Às dez horas da noite, debaixo de chuva, Carlinhos foi bater na casa do pai. O velho, que andava com a pressão baixa, ruim de saúde como o diabo, tomou um susto:
— Você aqui? A essa hora?
E ele, desabando na poltrona, com profundíssimo suspiro:
— Pois é, meu pai, pois é!
— Como vai Solange? - perguntou o dono da casa. Carlinhos ergueu-se; foi até a janela espiar o jardim pelo vidro. Depois voltou e, sentando-se de novo, larga a bomba:
— Meu pai, desconfio de minha mulher.
Pânico do velho:
— De Solange? Mas você está maluco? Que cretinice é essa?
O filho riu, amargo:
— Antes fosse, meu pai, antes fosse cretinice. Mas o diabo é que andei sabendo de umas coisas... E ela não é a mesma, mudou muito.
Então, o velho, que adorava a nora, que a colocava acima de qualquer dúvida, de qualquer suspeita, teve uma explosão:
— Brigo com você! Rompo! Não te dou nem mais um tostão!
Patético, abrindo os braços aos céus, trovejou:
— Imagine! Duvidar de Solange!
O filho já estava na porta, pronto para sair; disse ainda:
— Se for verdade o que eu desconfio, meu pai, mato minha mulher! Pela luz que me alumia, eu mato, meu pai!
A SUSPEITA
Casados há dois anos, eram felicíssimos. Ambos de ótima família. O pai dele, viúvo e general, em vésperas de aposentadoria, tinha uma dignidade de estátua; na família de Solange havia de tudo: médicos, advogados, banqueiros e, até, ministro de Estado. Dela mesma, se dizia, em toda parte, que era "um amor" ; os mais entusiastas e taxativos afirmavam: "É um doce-de-coco". Sugeria nos gestos e mesmo na figura fina e frágil qualquer coisa de extraterreno. O velho e diabético general poderia pôr a mão no fogo pela nora. Qualquer um faria o mesmo. E todavia... Nessa mesma noite, do aguaceiro, coincidiu de ir jantar com o casal um amigo de infância de ambos, o Assunção. Era desses amigos que entram pela cozinha, que invadem os quartos, numa intimidade absoluta. No meio do jantar, acontece uma pequena fatalidade: cai o guardanapo de Carlinhos. Este curva-se para apanhá-lo e, então, vê, debaixo da mesa, apenas isto: os pés de Solange por cima dos de Assunção ou vice-versa. Carlinhos apanhou o guardanapo e continuou a conversa, a três. Mas já não era o mesmo. Fez a exclamação interior: "Ora essa! Que graça!". A angústia se antecipou ao raciocínio. E ele já sofria antes mesmo de criar a suspeita, de formulá-la. O que vira, afinal, parecia pouco, Todavia, essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como um contato asqueroso. Depois que o amigo saiu, correra à casa do pai para o primeiro desabafo. No dia seguinte, pela manhã, o velho foi procurar o filho:
— Conta o que houve, direitinho!
O filho contou. Então o general fez um escândalo:
— Toma jeito! Tenha vergonha! Tamanho homem com essas bobagens!
Foi um verdadeiro sermão. Para libertar o rapaz da obsessão, o militar condescendeu em fazer confidências:
— Meu filho, esse negócio de ciúme é uma calamidade! Basta dizer o seguinte: eu tive ciúmes de tua mãe! Houve um momento em que eu apostava a minha cabeça que ela me traia! Vê se é possível?!
A CERTEZA
Entretanto, a certeza de Carlinhos já não dependia de fatos objetivos. Instalara-se nele. Vira o quê? Talvez muito pouco; ou seja, uma posse recíproca de pés, debaixo da mesa. Ninguém trai com os pés, evidentemente. Mas de qualquer maneira ele estava "certo". Três dias depois, há o encontro acidental com o Assunção, na cidade. O amigo anuncia, alegremente:
— Ontem viajei no lotação com tua mulher.
Mentiu sem motivo:
— Ela me disse.
Em casa, depois do beijo na face, perguntou:
— Tens visto o Assunção?
E ela, passando verniz nas unhas:
— Nunca mais.
— Nem ontem?
— Nem ontem. E por que ontem?
— Nada,
Carlinhos não disse mais uma palavra; lívido, foi no gabinete, apanhou o revólver e o embolsou. Solange mentira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infidelidade. A adúltera precisa até mesmo das mentiras desnecessárias. Voltou para a sala; disse à mulher entrando no gabinete:
— Vem cá um instantinho, Solange.
— Vou já, meu filho.
Berrou:
— Agora!
Solange, espantada, atendeu. Assim que ela entrou, Carlinhos fechou a porta, a chave. E mais: pôs o revólver em cima da mesa. Então, cruzando os braços, diante da mulher atônita, disse-lhe horrores. Mas não elevou a voz, nem fez gestos:
— Não adianta negar! Eu sei de tudo! E ela, encostada à parede, perguntava:
— Sabe de que, criatura? Que negócio é esse? Ora veja!
Gritou-lhe no rosto três vezes a palavra cínica! Mentiu que a fizera seguir por um detetive particular; que todos os seus passos eram espionados religiosamente. Até então não nomeara o amante, como se soubesse tudo, menos a identidade do canalha. Só no fim, apanhando o revolver, completou:
— Vou matar esse cachorro do Assunção! Acabar com a raça dele!
A mulher, até então passiva e apenas espantada, atracou-se com o marido, gritando:
— Não, ele não!
Agarrado pela mulher, quis se desprender, num repelão selvagem. Mas ela o imobilizou, com o grito:
— Ele não foi o único! Há outros!